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La base material de la nación. El concepto de nación en Marx y Engels

Carlos Barros Guimeráns

El Viejo Topo, 2020 (220 pp.)

 Pub. MURGUÍA. Revista Galega de Historia, nº 43-44, xaneiro-decembro 2021, pp. 192-197.

Damos conta agora da publicação do livro de Carlos Barros, medievalista, fundador de “Historia a Debate” e cofundador do PCG. O livro é uma revisão e ampliação de um trabalho anterior, escrito originalmente em galego e publicado no ano 198510 e que desenvolve uma teoria marxista unificada da classe e da nação que parte da releitura sistemática das obras de Marx e Engels, especialmente atenta a tudo aquilo referido à nação e aos processos de construção nacional, lutas políticas que no seu dia interessaram os fundadores do mancismo na sua elaboração de uma “história imediata”.

Com efeito, Karl Marx e Friedrich Engels estudaram de maneira sistemática o processo abstrato do Capital, mas abordaram também, embora fosse de um modo fragmentário e casual, o estudo concreto das condições de produção nas comunidades nacionais. A primeira parte do livro trata os conflitos nacionais do século XIX: eis a parte “histórica” do livro, à que segue uma reflexão sobre a teoria da nação subjacente nos autores alemães, onde são revisitadas as diversas condições de produção nos casos concretos de Alemanha, Polónia, Irlanda, China ou os países eslavos. Finalmente, Carlos Barros debulha uma teoria marxista da nação onde o conceito de “condições de produção” permite compreender a diversidade dos processos nacionais passados e presentes.

Não ignora o autor, certamente, a complexidade e a ambivalência que o conceito de nação apresenta nos escritos de Marx e de Engels. Contudo, essa ambiguidade reduz-se graças à dicotomia marxista, herdada de Hegel, da “Nação em si”, descrita nas características objetivas face a uma “Nação para si”, a das suas características subjetivas. A importância relativa de umas ou de outras características irá determinar, segundo Marx, a viabilidade dos projetos nacionais, em um movimento de espiral dialética. Seja como for, Carlos Barros utiliza o conceito das “condições de produção” a modo de panca, por assim dizer, para levantar uma teoria marxista da nação que reduze de caminho essa complexidade e ambivalência do facto nacional por meio do método do materialismo histórico, que permite discernir de maneira “científica” (no sentido marxiano) quando estamos a falar de “realmente” de “nação” e de “processos nacionais”.

Não foi Carlos Barros, é claro, o primeiro marxista a reparar na importância das “condições de produção”, a base material da nação, para explicar os diferentes processos nacionais. De facto, Barros recorre aos escritos do teórico marxista-sionista Dov Borójov (falecido em 1917), úteis porque permitem explicar as diferentes nações -comunidades sociais diferenciadasde igual maneira que a participação no processo de produção e a relação com os meios de produção consentem explicar a existência das classes. Assim, o conflito entre forças de produção e relações de produção dá lugar à luta de classes (o interior da nação) e o conflito entre forças produtivas e condições de produção dá lugar à luta nacional (o exterior da nação).

Porém, Barros critica precisamente que Borójov esqueça a dimensão evolutiva (ou dialética) das condições de produção, que são também condições para a sua reprodução, e portanto também modificadas a cotio. A dizer do historiador viguês, o fim da propriedade privada dos meios de produção significa não é só dar cabo das classes, mas também “nacionalizar a nação”, isto é, conseguir que as condições de reprodução social (o ‘ património nacional”) sejam de todos os membros da nação. Nesse sentido, interpreta ele, a luta de classes seria também uma luta nacional que visa à conversão da “pátria fictícia” em “pátria verdadeira”. Nessa luta peIas condições de produção (e de reprodução) entram em jogo as forças de produção de uma nação dada, sim, mas também as relações de produção objeto de apropriação e ou imposição por parte de comunidades em luta, quer seja num âmbito interno ou externo à nação. Cabe lembrar a este respeito, como faz Barros, as lutas anticoloniais do século XX, onde a luta por uma vida digna era também uma luta pela libertação nacional. A classe e a nação compartilham, enfim, a sua base material e de aí a necessidade (e utilidade) de uma teoria unificada de classe e nação.

Em definitivo, as denominadas por Marx “condições de produção” são a base material da nação: uma mistura de fatores naturais, económicos, políticos e sociais, que influem no processo de produção e de aí nas relações de produção, diferentes segundo se trate dum ou doutro modo de produção. As condições de produção buscam assim a satisfação das necessidades gerais da nação e a sua reprodução social, sendo necessárias também para garantir a sua continuidade no tempo e no espaço. Por outras palavras, a base material é o que toda nação sem estado precisa para a sua soberania, sendo também o que explica que umas nações sobrevivam ou deixem de existir. E por mais que o marxismo faça das classes sociais o sujeito da História, não podemos infravalorar a órbita nacional porque as lutas nacionais atingem igualmente a produção (e a reprodução) das condições de produção.

A teoria da nação exposta por Carlos Barros resulta atraente pela potência explicativa e compreensiva a respeito das diferenças nacionais, entendidas como o resultado das diferentes condições de produção (económicas, naturais, sociais, culturais). E evidente como esta visão contrasta notavelmente com uma noção idealista (ou voluntarista) das nações, e óbvio também como ela é coerente com o método dialético utilizado por Marx e Engels, porque são os fatores subjetivos e os fatores objetivos da produção os que definem ou determinam uma nação, condicionando-se mutuamente em mudança permanente, em constante revisão.

Essa tensão entre as permanências e as rupturas faz com que a maneira concreta das pessoas de estar e viver num lugar e um momento determinados – a base material dos membros de uma nação-, esteja condicionada pelos resultados conseguidos por gerações precedentes, que por sua vez determinam as circunstâncias das gerações vindouras, a renovação e a reprodução das forças produtivas nacionais. De aí que a crítica marxista sustente a condição histórica do modo de produção capitalista, afirmando que existem condições prévias ao capitalismo, que entram em crise e que irão criar a base material de uma nova fornnação social, sendo que o capitalismo e os sistemas políticos a ele associados são históricos, transitórios e contêm em si a semente da sua dissolução. Ora bem, em 2021, após a caída do bloco soviético e o afundimento do paradigma alternativo das “democracias reais”, logo se percebe que isto não pode ser compreendido de maneira dogmática e mecanicista, como não o era, de resto, para os fundadores do marxismo, para quem as circunstâncias faziam as pessoas e as pessoas faziam as circunstâncias. “Nós” fazemos a nação, em definitivo. Carlos Barros, por outro lado, é bem consciente que a nação pode representar, com efeito, uma força alienante, contribuindo a esconder as situações reais e impedindo a transformação da sociedade, principalmente se as pessoas não controlam de maneira plena as relações entre si e com a natureza. Porém, lembra que as nações não são resultado do atual modo de produção capitalista, como não são resultado das relações de produção. E remete para os fundadores do marxismo, para quem a nação irá sobreviver certamente à revolução.

Dizia-se no início da resenha que Karl Marx e Friedrich Engels tinham abordado de maneira “fragmentária e casual” o estudo da nação, sendo as classes o sujeito fundamental da História. Por isso, no marxismo mais “ortodoxo” (que cada quem entenda isso como quiser) a nação foi denunciada como um fenómeno “burguês”, filho do capitalismo, que havia que superar mediante a luta de classes internacionalista. E porém, diz Barros, os fundadores do marxismo acreditaram igualmente no rol transformador das nações, desde que elas fossem comunidades humanas definidas pelas condições de produção e não fossem descritas de um jeito atemporal ou essencialista. Se prescindimos das coordenadas espaço-temporais de uma nação, portanto, estaremos a dar “uma versão mecânica e pobre, meramente quantitativa, da desigualdade do desenvolvimento humano.”

Falar em lutas de classes ou em lutas nacionais fazia sentido em 1985 e faz sentido hoje, parece dizer Barros, mas a condição de o fazer no sentido aberto e completo, isto é, dialético que Marx e Engels concederam ao conceito de classe social e de nação. Uma análise marxista do facto nacional exige evitar as simplificações e as compreensões mecânicas dos factos históricos e da vida das nações. Aliás, uma exegese consequente dos textos de Marx e Engels obriga a utilizar o método de análise que eles mesmos empregaram, a saber, o hipotético-dedutivo, que vai do geral ao particular (ao contrário que Stalin, aliás), para articular de maneira explícita uma teoria materialista da nação- losif Stalin forneceu uma teoria marxista da nação, mas ele o fez de maneira indutiva, pensando em dar satisfação às demandas nacionalistas no Império russo e deixando fora (conscientemente) as demandas da população judia, expressadas por Dov Borojov. De resto, a clássica definição de nação de Stalin -e que Castelao assumiu para a nação galega-, e a teoria da nação consequente, não condiz com as reflexões do próprio Marx e Engels, no que diz respeito à causa nacional de países como Irlanda ou Polónia. Uma lógica dedutiva exige, enfim, ir além das características evidentes (habitualmente as subjetivas) que definem as nações e se quisermos explicar as razões que explicam a variedade de nações, afirma Barros, temos de ir às condições de produção, não só às relações de produção, mas a tudo aquilo que faz possível a produção, enfim, os elementos naturais, históricos e sociais de uma nação. Os fundadores do marxismo pretendiam explicar os processos nacionais, mas sobretudo queriam encontrar a “mecânica interna” da nação, destaca Barros, e para isso adotaram uma perspectiva dialética e global, vinculada sempre às condições de produção de cada território.

A partir dos anos 70 do século XX a teoria marxista da nação iniciou a sua renovação em três direções: a) analisando os processos nacionais como uma luta de classes pela hegemonia; b) compreendendo a nação como um facto de longa duração, não restringida à época contemporânea (burguesa); e c) recuperando urna definição de nação que partia da consideração dialética dos fatores objetivos e subjetivos, potenciando a visão da nação como bloque de classes num momento determinado e fugindo, em definitivo, da visão essencialista, ahistórica e sistemática de Stalin. Se bem Barros não se decanta por nenhuma delas, sim defende a necessidade de completar essa terceira visão, a de Teray, tendo em conta que as condições de produção determinam as nações e todas as épocas, mas sem fazer delas entidades supra temporais nem marginalizar a importância fulcral da luta de classes. Com certeza, a teoria marxista privilegia o estudos dos aspectos económicos (objetivos) da nação, porque os considera os elementos sujeitos a mudança e portanto, objeto de transformação revolucionária, mas não desleixaram nunca os aspectos subjetivos da nação, a saber, as suas características políticas, sociais, culturais ou naturais, porque eles significam a permanência das nações.

A persistência das lutas nacionais -e em realidade todo o acontecido desde 1985 (data da edição galega)- demonstra a pertinência de uma teoria marxista da nação, capaz de dar resposta às demandas das comunidades nacionais sem estado, sobretudo quando a globalização não só não deu cabo das nações, mas intensificou a tensão entre diferentes identidades e projetos nacionais. Uma tensão que, contudo, não equivale a exclusão: no atual estádio de desenvolvimento planetário das forças produtivas, afirma Barros, as nações podem (e devem?) ser entendidas como círculos inclusivos, numa superposição de comunidades nacionais, de aí que Barros fale em “dupla e tripla nacionalidade” do indivíduo, ern um processo unificador/diversificador ainda nos inícios. Seja como for, para além de concordarmos com essa superposição identitária, contestada hoje desde o próprio soberanismo galego, ele destaca que se bem não existe ainda uma identidade nacional universal é porque as forças produtivas não igualaram as condições de produção a nível planetário; persistem as enormes desigualdades entre nações, bem como entre indivíduos e classes, o que impede controlar de maneira efetiva e racional essas condições, como também controlar os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza, com tudo o que isso significa no atual contexto de crise climática.

Em suma, o propósito do livro -declarado pelo autor- é contribuir para uma demonstração da “viabilidade de uma teoria marxista, materialista e histórica, da nação”, que não caia no materialismo vulgar ou no descritivismo, evitando a “banalização política dos factos diferenciais”, incorporando um caráter “dedutível, verificável e generalizável”. Nesse sentido, acreditamos desde estas páginas que La base material de Ia nación é um sólido contributo para a solução da tradicional falta de coerência entre a teoria nacionalista dos partidos marxistas e a sua prática política. Acrescentaria, igualmente, que a recuperação do conceito marxista das “condições de produção” permitiu ao historiador viguês não só a reivindicação de um hábito intelectual, cada vez mais ausente, de acudir às fontes originais; a reflexão de Carlos Barros facilita também a demonstração da utilidade da base material(ista) da nação, capaz de explicar a mudança e a permanência na curta e longa duração, isto é, o triunfo ou o fracasso das nações recuperando, em boa medida, a potência hermenêutica da historiografia marxista. Ao meu ver, trata-se de um resgate oportuno de uma obra teórica fundamental do marxismo galego, oportuno sobretudo para quem, como eu, não viveu o especial contexto em que o livro foi escrito, aqueles tempos anteriores ao “fim da História”. Recomendamos, enfim, a leitura do livro de Carlos Barros, La base material de Ia nación. El concepto de nación en Marx y Engels, que gostará especialmente a aquelas pessoas interessadas nas lutas nacionalistas do século XIX e na teoria política nacionalista.

Carlos Dias Diegues

Cátedra de Memoria Histórica (UDC)

Instituto Galego de Historia